É domingo de
Carnaval, ano de 2014. Estou em casa, sozinho. Minha
família está, agora, em uma praia de festejos carnavalescos, meus
amigos ou quase amigos em terras pernambucanas ou cearenses. Resta-me
essa sala, esse ventilador na cara, essa mala por desfazer no chão.
Resta-me essa ressaca de quem foi pra Olinda e voltou, no mesmo dia.
Resta-me a solidão, diria.
Reúno-me a três
amigos aqui mesmo, nessa sala. Ponho-me no chão, frente ao
computador, quando eles começam a se beijar. São de poucas
palavras, e se vestem com nada. Um deles tem tatuagem, o outro, o
cabelo descolorido; um consolo de duas cabeças, cus lambidos,
boquete feito, começa a nossa reunião. Eu, de olho, apenas observo
– aqui, só me cabe essa postura de voyeur.
De pau na mão, de sede na boca, vou-me ficando aqui, olhando. Daqui
a pouco, vou gozar, e espero pra gozar de novo, reparando novamente
nessas imagens, que me provocam de tantas maneiras. Nem os penso mais
como performers, como
gente frente a uma câmera e a produtores. São minha companhia nessa
domingo de Carnaval.
***
Fico
pensando, cá comigo, que as possibilidades de construção de uma
nova pornografia, ou de novas e outras pornografias estão dentro da
própria conjuntura das imagens que, de algum modo, já formam o
pornográfico. Nesse vídeo mesmo que acabo de relatar, nada de muito
novo. Mas há um quê de empoderamento do sujeito em e pelo seu corpo
e pelos seus desejos. Ora, eles não aparecem aqui para satisfazer o
desejo do outro, mas estão embebidos e saturados nos próprios
desejos, no desejo de si, no desejo do desejo de si,
para, então, colocar esse desejo no corpo do outro. Parece não
haver, portanto, uma visível relação de poder nesse vídeo, ou uma
relação, uma encenação que visibilize uma relação de poder. Daí
meu pensamento: criar pornografias em que os corpos ali estejam tão
desejosos, de si e do outro, em que os sujeitos se empoderam e
produzem uma certa autonomia diante do que fazer para o prazer de si
passa pela criação e pela montagem de outros planos, de outros
lugares que a câmera possa ocupar, da mise-en-scène
do ambiente. Nessa pornografia, nada de muito próximo, nada de
grandes closes nas
genitálias, e mesmo de grandes genitálias. Os incitamentos
produzidos pela fala durante os atos sexuais nesse vídeo remetem
mais ao incitamento do desejo do outro do que de uma possível
submissão ou a demarcação de um espaço (poderoso) de fala.
Talvez, ao fim, ainda não sei, uma cena de grande close,
durante a penetração, estando a câmera em contre-plongée,
uma cena de cus e genitálias. Mas esse seria o único plano que mais
se aproxima e que mais coloca e potencializa a fragmentação do
corpo e da imagem. De todo modo, trata-se ainda de uma pornografia
comum, de traços canônicos. O vídeo está disponibilizado junto a
outros em um site de compartilhamento de vídeos pornográficos
diversos: gonzos, amadores, comerciais, com marcações e tags
diversas. Passaria sem muito alarde – e, provavelmente, passou –
à vista de um sem número de espectadores de pornô que acompanham
as postagens do site. Talvez me tivesse passado também despercebido.
O que quero dizer que não há nada de novo nem de extraordinário
nesse vídeo, é como um outro qualquer. Os signos irrompem daí
É
importante pensar também em como a imagem do beijo opera no vídeo
pornô, em como a presença e a visibilidade do beijo (e seus matizes
e performances) propiciam um movimento de incorporamento do sujeito,
que não é apenas sexo, mas sexo com paixão, de olho fechado, e
boca molhada. Há, sim, o cu, a genitália, cá embaixo, mas aí em
cima, a boca, a língua, o olho fechado que simula (ou conduz), aí
sim, o erotismo. O erotismo como compulsão de um corpo em busca de
se completar em um outro, ou em outros. (Por que dar visibilidade ao
beijo no texto pornográfico?
Fica aqui uma dúvida, uma questão, uma bexiga para ser enchida
posteriormente – ou a permanecer vazia).
Dei
pause no vídeo um
pouco antes do final. Talvez antes do gozo, não sei ainda. Deixe-me
ir ali, na uma outra aba, na uma outra página, para terminar de
vê-lo. Volto para contar o resto ou os trago os restos comigo.
***
Voltei.
De
fato, a cena do gozo: sem ela, impossível permanecer no pornô.
Profanar o gozo no pornô é um desafio, um projeto, ou um convite.
Mas talvez só seja possível profanar o gozo no pornô pelo próprio
gozo no pornô.
***
O
pornô produz na imagem descontinuidades. E cá eu falo no tom mais
técnico do termo. Descontinuidade como aquilo que não se continua
de uma imagem a outra dentro de uma montagem, de um corte. Das vezes
em que, por exemplo, um dos sujeitos envolvidos na ação sexual está
de pau duro, prestes a realizar o ato de penetração e, de um corte
para outro, aparece usando uma camisinha. Não se dá, nesse caso, a
visibilidade para, por exemplo o ato de colocar o preservativo – um
gesto, uma ausência que pode dizer várias coisas – e opera-se uma
muitas vezes uma fantasiosa descontinuidade (algo estranho para um
gênero tão calcado no realismo de suas ações sexuais). Parece ser
um gesto importante e interessante o de encarar uma certa necessidade
de continuidade. Necessidade essa mesma de causa e efeito.
Necessidade essa que requer o envolvimento do tesão e do desejo em
gestos como o de pôr um preservativo, por exemplo. Mas também
pensar o que investir nessa continuidade traz de novo e provoca o
espectador. A cena final do gozo do vídeo que relato aqui investe
nesse procedimento. São três homens, e está na hora de gozar. Um
deles goza, ao ser penetrado, no rosto de um outro sujeito. Esse
mesmo sujeito, também penetrado por aquele terceiro, goza e no rosto
do outro. Qual não é minha surpresa quando vejo que o rosto que
fora gozado antes permanecia com o gozo na cara enquanto cá embaixo
ele era penetrado e se punha a gozar? Não há assepsia, nem limpeza:
há o investimento na continuidade, numa certa “fidelidade” de
ações (ou de relações de causa e efeito) que parecem colocar o
espectador em uma situação de participação efetiva, de quase
testemunha.