terça-feira, 11 de março de 2014

profanar o pornô

É domingo de Carnaval, ano de 2014. Estou em casa, sozinho. Minha família está, agora, em uma praia de festejos carnavalescos, meus amigos ou quase amigos em terras pernambucanas ou cearenses. Resta-me essa sala, esse ventilador na cara, essa mala por desfazer no chão. Resta-me essa ressaca de quem foi pra Olinda e voltou, no mesmo dia. Resta-me a solidão, diria.

Reúno-me a três amigos aqui mesmo, nessa sala. Ponho-me no chão, frente ao computador, quando eles começam a se beijar. São de poucas palavras, e se vestem com nada. Um deles tem tatuagem, o outro, o cabelo descolorido; um consolo de duas cabeças, cus lambidos, boquete feito, começa a nossa reunião. Eu, de olho, apenas observo – aqui, só me cabe essa postura de voyeur. De pau na mão, de sede na boca, vou-me ficando aqui, olhando. Daqui a pouco, vou gozar, e espero pra gozar de novo, reparando novamente nessas imagens, que me provocam de tantas maneiras. Nem os penso mais como performers, como gente frente a uma câmera e a produtores. São minha companhia nessa domingo de Carnaval.

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Fico pensando, cá comigo, que as possibilidades de construção de uma nova pornografia, ou de novas e outras pornografias estão dentro da própria conjuntura das imagens que, de algum modo, já formam o pornográfico. Nesse vídeo mesmo que acabo de relatar, nada de muito novo. Mas há um quê de empoderamento do sujeito em e pelo seu corpo e pelos seus desejos. Ora, eles não aparecem aqui para satisfazer o desejo do outro, mas estão embebidos e saturados nos próprios desejos, no desejo de si, no desejo do desejo de si, para, então, colocar esse desejo no corpo do outro. Parece não haver, portanto, uma visível relação de poder nesse vídeo, ou uma relação, uma encenação que visibilize uma relação de poder. Daí meu pensamento: criar pornografias em que os corpos ali estejam tão desejosos, de si e do outro, em que os sujeitos se empoderam e produzem uma certa autonomia diante do que fazer para o prazer de si passa pela criação e pela montagem de outros planos, de outros lugares que a câmera possa ocupar, da mise-en-scène do ambiente. Nessa pornografia, nada de muito próximo, nada de grandes closes nas genitálias, e mesmo de grandes genitálias. Os incitamentos produzidos pela fala durante os atos sexuais nesse vídeo remetem mais ao incitamento do desejo do outro do que de uma possível submissão ou a demarcação de um espaço (poderoso) de fala. Talvez, ao fim, ainda não sei, uma cena de grande close, durante a penetração, estando a câmera em contre-plongée, uma cena de cus e genitálias. Mas esse seria o único plano que mais se aproxima e que mais coloca e potencializa a fragmentação do corpo e da imagem. De todo modo, trata-se ainda de uma pornografia comum, de traços canônicos. O vídeo está disponibilizado junto a outros em um site de compartilhamento de vídeos pornográficos diversos: gonzos, amadores, comerciais, com marcações e tags diversas. Passaria sem muito alarde – e, provavelmente, passou – à vista de um sem número de espectadores de pornô que acompanham as postagens do site. Talvez me tivesse passado também despercebido. O que quero dizer que não há nada de novo nem de extraordinário nesse vídeo, é como um outro qualquer. Os signos irrompem daí
É importante pensar também em como a imagem do beijo opera no vídeo pornô, em como a presença e a visibilidade do beijo (e seus matizes e performances) propiciam um movimento de incorporamento do sujeito, que não é apenas sexo, mas sexo com paixão, de olho fechado, e boca molhada. Há, sim, o cu, a genitália, cá embaixo, mas aí em cima, a boca, a língua, o olho fechado que simula (ou conduz), aí sim, o erotismo. O erotismo como compulsão de um corpo em busca de se completar em um outro, ou em outros. (Por que dar visibilidade ao beijo no texto pornográfico? Fica aqui uma dúvida, uma questão, uma bexiga para ser enchida posteriormente – ou a permanecer vazia).
Dei pause no vídeo um pouco antes do final. Talvez antes do gozo, não sei ainda. Deixe-me ir ali, na uma outra aba, na uma outra página, para terminar de vê-lo. Volto para contar o resto ou os trago os restos comigo.

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Voltei.
De fato, a cena do gozo: sem ela, impossível permanecer no pornô. Profanar o gozo no pornô é um desafio, um projeto, ou um convite. Mas talvez só seja possível profanar o gozo no pornô pelo próprio gozo no pornô.

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O pornô produz na imagem descontinuidades. E cá eu falo no tom mais técnico do termo. Descontinuidade como aquilo que não se continua de uma imagem a outra dentro de uma montagem, de um corte. Das vezes em que, por exemplo, um dos sujeitos envolvidos na ação sexual está de pau duro, prestes a realizar o ato de penetração e, de um corte para outro, aparece usando uma camisinha. Não se dá, nesse caso, a visibilidade para, por exemplo o ato de colocar o preservativo – um gesto, uma ausência que pode dizer várias coisas – e opera-se uma muitas vezes uma fantasiosa descontinuidade (algo estranho para um gênero tão calcado no realismo de suas ações sexuais). Parece ser um gesto importante e interessante o de encarar uma certa necessidade de continuidade. Necessidade essa mesma de causa e efeito. Necessidade essa que requer o envolvimento do tesão e do desejo em gestos como o de pôr um preservativo, por exemplo. Mas também pensar o que investir nessa continuidade traz de novo e provoca o espectador. A cena final do gozo do vídeo que relato aqui investe nesse procedimento. São três homens, e está na hora de gozar. Um deles goza, ao ser penetrado, no rosto de um outro sujeito. Esse mesmo sujeito, também penetrado por aquele terceiro, goza e no rosto do outro. Qual não é minha surpresa quando vejo que o rosto que fora gozado antes permanecia com o gozo na cara enquanto cá embaixo ele era penetrado e se punha a gozar? Não há assepsia, nem limpeza: há o investimento na continuidade, numa certa “fidelidade” de ações (ou de relações de causa e efeito) que parecem colocar o espectador em uma situação de participação efetiva, de quase testemunha. 

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